Mudanças no “tabuleiro de xadrez” russo

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Artilharia russa (Politnavigator.net).

Artilharia russa (Politnavigator.net).

A ofensiva russa em Kharkov poderá ser o início de um esforço que terminará por encerrar a guerra, mas o momento em que isso vai ocorrer dependerá de uma interação complexa entre as diversas forças envolvidas, e não apenas militares.


À medida em que vemos a Ucrânia a ficar cada vez mais para trás na guerra de desgaste contra a Rússia, aparentemente porque o Ocidente hesita e não está suficientemente disposto a fazer sacrifícios militares, permitindo à Rússia ganhar tempo, olhamos para o complexo militar-industrial russo, que ainda é capaz de produzir, com o apoio de Estados como a China e a Índia.

A Ucrânia, por outro lado, já está gravemente afetada porque o seu próprio complexo militar-industrial não consegue produzir nos mesmos níveis do seu oponente. E, acima de tudo, porque falta compensação suficiente por parte do Ocidente. Na verdade, estão fornecendo alguns materiais, mas apenas o suficiente para garantir que a Ucrânia seja capaz de lutar, isto é, resistir, mas não para que possa vencer. Como dissemos antes, no Ocidente temos sociedades pós-heroicas, onde o bem-estar está em primeiro lugar.

Entretanto, na Rússia, nas últimas semanas, após a quinta eleição de Vladimir Putin para o cargo de presidente e sua tomada de posse, o governo apresentou a demissão (de acordo com a Constituição) ao novo-velho chefe de Estado, que passou assim a fazer novas nomeações.

Desta forma (e não como a maioria dos meios de comunicação ocidentais nos diz) se iniciou um meticuloso movimento de “xadrez” e estratégia. Pois ambas são atividades que exigem conhecimento do terreno, dos participantes, das regras, dos movimentos, antecipar, prever, esperar, fingir, conhecer as jogadas e resolvê-las antes de provocá-las.

Vemos assim alguns movimentos no “tabuleiro” do poder russo, como a confirmação do primeiro-ministro Mikhail Mishustin, economista e especialista em sistemas de informática, no cargo desde 2020. Depois, em cascata, esperava-se também a reconfirmação de todos os outros ministros ao mesmo tempo, exceto os mais importantes. Mas alguns movimentos surpreendentes surgiram em um anúncio sobre Andrej Belousov, o primeiro vice-primeiro-ministro, que também tinha sido primeiro-ministro durante 20 dias em 2020, quando o titular, Mishustin, contraiu covid. Belousov é praticamente desconhecido no Ocidente, mas é bastante conhecido na Rússia.

Talvez não para o cidadão comum, mas sim nos ambientes que importam. Moscovita, filho de um importante economista soviético, estudou física, matemática e economia, e iniciou uma brilhante carreira acadêmica que o levou, no final da década de 1990, a se tornar conselheiro econômico de vários primeiros-ministros. Nessa atividade, escreveu vários relatórios importantes sobre o estado da economia russa na transição da economia planificada da União Soviética para o mercado livre.

Um breve currículo

O ponto de virada para Belousov ocorreu em 2006, quando o então ministro do Desenvolvimento Econômico, German Gref, o nomeou seu vice. A partir daí esteve sempre em lugares muito importantes do governo russo. Em 2020, o sempre discreto Belousov se tornou primeiro vice-ministro. Apenas pesquisando na internet, veremos que ele não é um “paraquedista” na alta política russa.

Foi necessário um breve currículo para explicar o quão surpreendente é encontrar Belousov agora, no meio da guerra, à frente do Ministério da Defesa.

A surpresa aumenta se levarmos em conta que o ministro cessante da Defesa, Sergej Shoigu, é um dos homens leais a Putin, e confrontou Yevgeny Prigozhin, proprietário da PMC Wagner, enfrentando mesmo sua rebelião armada no verão passado. Shoigu não é qualquer personagem. Ele está na política desde o início da década de 1990 e durante muitos anos foi um ministro de Situações de Emergência altamente respeitado. Chegou à Defesa em 2012 e é o arquiteto da intensa e rápida modernização a que foram submetidas as forças armadas russas.

Mas, ao contrário dos anúncios divulgados nos meios de comunicação de massa, Shoigu não foi eliminado e nem rebaixado, mas promovido. Na verdade, ele se torna secretário do Conselho de Segurança, cargo ocupado até ontem por Sergei Patrushev, e também ocupa o cargo de vice-presidente da crucial Comissão para o Complexo Militar-Industrial presidida pelo superfalcão Dmitri Medvedev.


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Jogo de xadrez

Será interessante entender o porquê dessa “jogada de xadrez”. O curioso é que toda essa movimentação ocorre justamente quando as tropas russas atacam no norte da Ucrânia e tentam avançar ao longo de toda a frente, que, de norte a sul, entre Kharkov e Odessa, tem mil quilômetros de extensão. Serão estas nomeações, que abalam equilíbrios bem estabelecidos, um sinal de força (Putin está tão no poder e suas forças tão bem instaladas no comando) que lhe permitem fazer mudanças importantes na equipe que ocupa o coração do Kremlin? Ou há algo errado dentro do poder e as mudanças servem para evitar problemas maiores?

Putin leva muito a sério os compromissos da OTAN e do Ocidente de apoiar a Ucrânia “enquanto for necessário” e sua perspectiva é a de um conflito destinado a durar, ou seja, que pode tornar-se crônico. Neste contexto, a despesa com a defesa está crescendo: este ano atingirá 110 bilhões de euros, equivalente a 6% do PIB, enquanto em 2022 foi de 86 bilhões, equivalente a 4,06% do PIB. Recursos preciosos que a Rússia, sob sanções, deve encontrar e subtrair de outros setores e, portanto, não pode se dar ao luxo de desperdiçá-los.

Como nos diz o dr. Lorenzo Carrasco em uma interessante opinião [1] publicada no X (antigo Twitter): “A recente troca do general Sergei Shoigu pelo economista Andrei Belousov no Ministério da Defesa, que surpreendeu e desorientou muitos observadores estrangeiros, revela não apenas uma intenção de reforçar o complexo industrial de defesa, mas também garantir que os avanços tecnológicos sejam refletidos em uma variedade de novas armas e equipamentos. Que sejam refletidos nas aplicações e usos civis, ao contrário do que aconteceu com a tecnologia militar na antiga União Soviética.

O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, citou a necessidade de o órgão incorporar conceitos inovadores e progressistas. Belousov é pesquisador sênior do antigo Instituto Central de Matemática Econômica da Academia de Ciências da URSS e do Instituto de Previsão Econômica da Academia Russa de Ciências. No governo ocupou vários cargos de destaque, incluindo vice-ministro do Desenvolvimento Econômico e Comércio e vice-primeiro-ministro.

Em relação às tecnologias de ponta, as Forças Armadas russas têm demonstrado sua vasta superioridade em termos de mísseis hipersônicos e capacidades de guerra eletrônica, além de terem melhorado em muito a utilização de drones de reconhecimento e combate, naquele que já é um dos mais relevantes aspectos da revolução militar que se desenvolve nos campos de batalha ucranianos. Drones que custam menos de mil dólares têm sido usados ​​para desativar veículos blindados no valor de milhões de dólares, incluindo os aclamados tanques americanos Abrams e alemães Leopard. A recente ofensiva russa contra Kharkov poderá ser o início de um último esforço para levar o conflito armado à sua conclusão lógica.

No entanto, o timing do processo dependerá de uma interação complexa entre a agenda russa, a relutância das potências ocidentais em admitir um triunfo militar russo e a vontade do governo ucraniano de continuar o massacre de sua população masculina em idade militar.

[1] Veja em: https://x.com/Lorenzocbazua/status/1790580827702583490

Como nos diz Clausewitz: “A guerra não é apenas um verdadeiro camaleão, porque em cada caso específico modifica um pouco sua natureza, mas também, no que diz respeito às suas manifestações globais, em relação às tendências que nela predominam, é uma trindade maravilhosa composta pela violência original do seu elemento, o ódio e a inimizade – que deve ser considerado um instinto elementar cego –, o jogo de probabilidades e do acaso – que a tornam uma atividade livre do espírito – e seu carácter subordinado como instrumento político, que a faz cair no mero intelecto.

A primeira destas faces está mais voltada para o Povo, a segunda mais voltada para o General e a terceira mais voltada para o Governo. “As paixões que vão se inflamar na guerra já devem estar presentes no Povo; a extensão que o jogo da coragem e do talento terá no reino das probabilidades do acaso depende das peculiaridades do General e do Exército, mas os propósitos políticos são de exclusiva responsabilidade do Governo.

Clausewitz mostra um forte senso das forças da História. De um lado, o duelo, os dois tipos de guerra e a finalidade política, de outro, a maravilhosa trindade como sujeito plural que atua na guerra, com seu dinamismo e constante transformação, seu significado histórico. Neste momento estamos vendo a aplicação da teoria: “O entendimento que determina a guerra como instrumento político subordinado pertence ao líder político.


Publicado no La Prensa.

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